O Sistema Único de Saúde (SUS) é produto de um longo e complexo processo histórico de luta pela construção de cidadania e da saúde como um direito em nosso país. Esse movimento político e ideológico encontra sua maturidade durante o processo constituinte e consegue inscrever na constituição brasileira que a saúde é um direito de todos e dever do estado. O ideário que move os princípios da chamada Reforma Sanitária Brasileira pode ser sintetizado em uma frase do saudoso Sérgio Arouca: “Trata-se de um processo civilizatório”. É Importante lembrar que esse movimento, político desde seu início, colocava para a sociedade uma visão ampliada de saúde centrada na questão de que a saúde é social e politicamente determinada. Ou seja, não se tratava (e continua sendo assim) apenas de construir um sistema de atenção à saúde, mas de um conjunto de políticas sociais e econômicas que possam impactar de maneira radical as condições de vida da população brasileira. Ou seja, aqui a visão ampliada de saúde se interliga com as questões da reforma urbana, da moradia e transporte públicos, da estrutura fiscal e tributária, do cuidado com o meio ambiente, da renda e do trabalho, da educação pública universal e de qualidade, da prioridade para as políticas de ciência e tecnologia para o desenvolvimento nacional, da importância da cultura e suas relações com a saúde, com o desenvolvimento da primeira infância como categoria central para pensar o desenvolvimento humana dos cidadãos e cidadãs deste país.
Nesses mais de 25 anos de desenvolvimento do SUS, a saúde brasileira sofreu profundas transformações e para melhor. A dimensão de Saúde Pública do SUS avançou bastante. Programa de Imunizações, erradicação e controle de doenças infecciosas, nosso Programa de AIDS, Políticas de Prevenção e Promoção, tabagismo, política de transplantes, redução da mortalidade infantil e aumento da expectativa de vida, programa de saúde da família que já cobre 50% da população, política de saúde bucal, assistência farmacêutica para doenças crônicas; são exemplos desse sucesso. Os problemas se concentram na desigualdade do acesso entre regiões e classes sociais e na qualidade da assistência. O SUS tem cumprido um papel central na qualificação da democracia brasileira através do trabalho dos Conselhos Municipais, estaduais e nacional de saúde; além das conferências de saúde realizadas a cada quatro anos. É um modo de exercitar a democracia direta que tem sido copiado por outras dimensões das políticas públicas. Há outra dimensão referente ao processo de desenvolvimento do país e da sociedade brasileira. A existência do SUS é fator fundamental no processo de construção de um país efetivamente desenvolvido e obstáculo à implantação, no Brasil, da barbárie disfarçada de modernidade que é a disseminação de uma visão da saúde vista como mercadoria ou bem a ser comprado no mercado de acordo com a capacidade de gasto de famílias ou empresas.
A saúde talvez seja a mais transversal e transdisciplinar dentre todas as políticas. De um lado, ela se beneficia de políticas voltadas para a redução de desigualdades e para a proteção dos mais vulneráveis. De outro, acolhe em suas múltiplas dimensões estratégias e politicas do campo da educação, da ação social, da cultura, da política habitacional, da nutrição, do saneamento básico e ambiental, do desenvolvimento em seu sentido mais amplo, como produtor de saúde e bem-estar. O SUS trata apenas de algumas dessas dimensões no campo da promoção, prevenção e atenção. A saúde em seu sentido mais amplo precisa dialogar com o conjunto de políticas econômicas e sociais, já que ela é socialmente e politicamente determinada. Mas é importante lembrar também a dimensão cultural da saúde, a da disseminação na sociedade da saúde como um bem público, as questões relacionadas ao preconceito e à discriminação, à luta contra quaisquer formas de violência e a defesa da paz.
O sanitarista cuida de questões num contexto social e político. Pensa na prevenção de doenças ou em como produzir saúde lidando com dilemas estruturais, econômicos, sociais, políticos, organizacionais etc. Já na clínica temos a dimensão do médico que atende, examina e cuida e que é totalmente singular. Você está diante do sofrimento real.
A transição do micro para o macro é muito complexa. Quando você trabalha na gestão pública, o produto de seu trabalho pode ter um grande impacto para quem está na ponta. Se consigo colocar mais recursos, implementar uma nova política ou construir um novo hospital, causo mudança na vida das pessoas e no trabalho dos profissionais da saúde. Mas, quando se trata de humanizar o atendimento, estamos falando em reconstruir a relação médico-paciente. Isso permite resgatar a ideia da escuta, do toque numa medicina cada vez mais científica e técnica, em que muitas vezes se perde essa perspectiva. Dependendo da primeira abordagem, a pessoa se sentirá muito melhor ou muito pior.
Nenhum médico, mesmo atuando apenas na área de planejamento, pode ignorar a dimensão da clínica da prática concreta na ponta do sistema. Em sua lide ele deve estar atento a essas duas dimensões: da racionalidade do seu ofício, sim, mas sem olvidar dos pacientes reais.
Uma boa base de formação em clínica me parece essencial para a formação de qualquer especialista em saúde pública. Sem isso, ele dificilmente conseguirá ver com toda clareza os desafios reais ao planejar um novo sistema ou ao implantar uma nova abordagem de gestão num serviço de saúde. Isso é válido para o médico, o enfermeiro, o dentista, o farmacêutico ou outro profissional que pretenda abraçar os desafios da saúde pública em nosso país. Dentro de cada uma dessas profissões, ampliar a visão sobre sua especialidade e vivenciar a prática profissional na realidade concreta será fundamental para um bom desempenho como gestor, pesquisador ou professor.
Se couber aqui algum tipo de recomendação aos jovens profissionais, diria para ir além da teoria e da prática. Para planejar nossa vida profissional, precisamos, sim, da ciência. Mas essa nem sempre consegue referir-se ao ser humano em sua totalidade. Não é incomum que se recorra às artes e à razão estética para, junto da ética e da política, fazermos nosso trabalho.
Se ousasse prescrever algo, hoje, para os colegas médicos e das demais profissões do campo da saúde, seria atenção às questões da política e do poder na sociedade. Leiam tanta poesia quanto literatura científica. Permitam-se atravessar fronteiras de conhecimento para ponderar outras maneiras de pensar, de fazer e de compreender a vida que compartilhamos para melhor exercer sua clínica, a arte do cuidar, planejar, gerir, pesquisar e ensinar.
Autor:
José Gomes Temporão – Membro Titular da Academia Nacional de Medicina