O Julho Amarelo, à semelhança de outros eventos marcantes do calendário, como o Outubro Rosa e o Novembro Azul, é o mês dedicado a campanha de conscientização sobre as principais doenças do Fígado e, em particular, as hepatites virais.
As hepatites virais são consideradas, desde os idos tempos da história da humanidade, um dos nossos maiores problemas de saúde publica. Hipocrates ao descrever, no 5o século antes de Cristo, quadro epidêmico de icterícia, tornou-se, muito provavelmente, o responsável pelo primeiro relato de surto de hepatites virais de que se tem noticia. Posteriormente, outros registros surgiram, muitos associados a guerras ou a condições de saneamento básico inadequado ou inexistente.
Na última metade do século passado notável desenvolvimento ocorreu na área da Moderna Hepatologia, com a descoberta, isolamento e clonagem dos principais tipos de hepatites virais (A, B, C, D, E), divididos em dois grupos: os entericamente transmitidos (A e E) e àqueles transmitidos por via parenteral (percutanea), sexual e vertical (perinatal) (B, C e D). Acrescente-se a essas descobertas, o desenvolvimento e a produção desde os anos 80/90 das vacinas contra os vírus da hepatite A e B, ja disponíveis em nosso meio e dispensadas na rede pública de saúde.
Duas dessas formas de hepatite chamam a atenção pelo seu potencial de cronificação e de complicações: A hepatite B altamente endêmica no sudeste asiático e na Africa subsaahariana é responsavel por mais de 300 milhões de individuos contaminados, muitos que se contaminaram pela via vertical ou seja durante o trabalho de parto, podendo nesses recém natos evoluir para cronificação em até 60 a 80% dos casos. A hepatite C, predominantemente adquirida por exposição, no passado remoto a transfusão de sangue e derivados, uso e compartilhamento de agulhas e seringas contaminadas pelo uso de drogas ilicitas injetáveis é responsável por mais de 70 milhões de casos em todo o mundo, sendo que 75 a 85% dos casos irão evoluir para hepatite crônica e cerca de 20% a 30% destes para cirrose e suas complicações como o cancer do fígado, falencia hepática e transplante de fígado. No Brasil admite-se que tenhamos taxas de 0.5% a 1.0% de prevalência, respectivamente das hepatites B e C.
A Organização Mundial de Saúde em 2017, em conjunto com vários paises, incluindo o Brasil, planeja a erradicação das hepatites virais até 2030, meta ambiciosa, mas que repousa na identificação e triagem da população susceptivel, em sua maioria assintomática e anictérica (sem a presença da cor amarela nos olhos). Em todo o mundo e, até mesmo nos paíse ditos desenvolvidos, mais de 80% dos indíviduos não foram triados e nem diagnósticados e, o que é mais decepcionante, menos de 25% foram tratados com as drogas antivirais específicas para a hepatite B (Entecavir e Tenofovir) e para a hepatite C (Agentes antivirais de ação direta -DAA) como o Sofosbuvir, Ledipasvir e Velpatasvir, todos dispensados na rede de atenção básica de saude do SUS.
Dessa forma, faz-se necessária ampla rede de testagem dos nossos cidadãos, assim como o acesso aos serviços de referencia, além da conscientização da importância das medidas de higiene e prevenção.
Nesse momento de pandemia do novo coronavírus que nos impõe isolamento e distanciamento social as nossas campanhas de testagem e triagem sorológica, habitualmente realizadas de modo presencial, tornaram-se proibitivas, o que não nos impede de conclamar a toda a sociedade brasileira para que se conscientize sobre a importância das doenças do fígado e, em particular das hepatites virais.
É de fundamental importância a noção de que essas infecções virais são preveníveis por medidas de saneamento básico e água tratada para as formas de transmissão oral e fecal, como, também, já dispomos de vacinas seguras, altamente eficazes na prevenção das hepatites A, B e, por consequinte, D (Delta) e, de tratamento antiviral com altas taxas de cura, superiores a 95%, para as formas de hepatite viral C.
Carlos Eduardo Brandão-Mello é Professor Titular da Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro – UNIRIO. Presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH) e Membro Titular da Academia Nacional de Medicina (ANM)
A Importância das Hepatites Virais e das doenças crônicas do Fígado
As hepatites virais são consideradas, desde os idos tempos da história da humanidade, um dos nossos maiores problemas de saúde pública. Hipócrates ao descrever, no 5o século antes de Cristo, um quadro epidêmico de icterícia, tornou-se o responsável por um dos primeiros relatos de surtos de hepatites virais de que se tem notícia.
Posteriormente, outros registros surgiram, muitos associados a guerras ou a condições de saneamento básico inadequado ou inexistente.
Muitos séculos depois de Hipócrates, já no final do século 19, surgiram os primeiros registros de casos de hepatites transmitidas por via percutânea, tendo sido, estes, descritos por Lurman e colaboradores.
Nas décadas seguintes diversos autores descreveram casos de hepatites transmitidas por via percutânea, sendo que, somente em meados do século passado (1943), surgiram as primeiras associações de casos de hepatite com transfusão de sangue e derivados.
Com relação à identificação dos vírus e seus marcadores, as últimas décadas do século passado foram bastante profícuas. Em meados dos anos 60, Baruch Blumberg identificou o antígeno de superfície (HBsAg), o qual foi, inicialmente, denominado antígeno Austrália (Au), por ter sido identificado a partir de estudo realizados em aborígenes australianos.
Praticamente uma década se passou até que Steven Feinstone, em estudos utilizando fezes de humanos, identificasse, através de imunomicroscopia eletrônica o HAV.
A identificação do vírus Delta (HDV), em 1977, através dos estudos de Mario Rizzeto, também ocupou lugar de destaque na década de 70, tornando mais amplas as possibilidades de estudos das hepatites virais. O vírus E, cujas características epidemiológicas se assemelham as do vírus A, foi identificado na década de 80, através de imunomicroscopia eletrônica, tendo sido clonado somente em 1990, quando recebeu a denominação atualmente em uso.
Alguns anos se passaram até que outro vírus pudesse ser identificado. Em 1989, Choo et al. identificaram o vírus da hepatite C (HCV), um dos vírus de transmissão parenteral pertencente ao grupo dos agentes não-A, não-B, permitindo redução drástica das infecções através das transfusões de sangue e/ou derivados.
A infecção pelo vírus da hepatite C (HCV) é a mais importante causa de hepatite crônica, cirrose e carcinoma hepatocelular, sendo a principal causa de indicação de transplante hepático no mundo industrializado (Sherlock, 1994, Sherlock, 1995, Manns, 2017). A hepatite provocada pelo HCV é transmitida predominantemente por via parenteral, no passado remoto através de transfusões de sangue e seus derivados e, mais recentemente, pelo uso de drogas ilícitas injetáveis e através de promiscuidade sexual.
Estimava-se que mais de 170 milhões de indivíduos estivessem cronicamente infectados pelo HCV em todo o mundo (Sherlock, 1995, Manns, 2017). Atualmente a prevalência global de indivíduos infectados pelo HCV baseado na positividade por anticorpos anti-HCV é estimada em 1,6 % (variando de 1,3%-2,1 %), o que corresponderia a 115 milhões (variando de 92-149 milhões) de indíviduos infectados. Entretanto, alguns indivíduos espontaneamente ou por resultado de tratamento conseguem eliminar o vírus, persistindo apenas os anticorpos anti-HCV reagentes. Portanto, se levarmos em conta apenas a prevalência global virêmica, a estimativa reduz-se para 1% (variando de 0,8-1,14 %) ou 71 milhões (variando de 62-79 milhões) de pessoas infectadas com o HCV (MANNS et al., 2017; Blach, 2017).
Mais recentemente no Brasil, a prevalência da infecção virêmica pelo HCV é estimada em 0,9 % (variando entre 0,6%-0,9%), o que corresponderia a um população de quase dois milhões de pessoas infectadas (BLACH et al., 2017). Esses dados foram revistos pelo Ministério da Saúde do Brasil sendo a estimativa de prevalência de 0.7%, ao redor de 700 mil casos.
O HBV pode ser transmitido por via parenteral, através da inoculação de sangue ou derivados infectados, por via sexual, perinatal e intra-domiciliar. O período de incubação do HBV varia de 42 a 180 dias, podendo estar presente na saliva, sêmen e outros fluídos biológicos, como líquor e secreção vaginal.
O HBV apresenta elevada prevalência em indivíduos sexualmente promíscuos (homo e heterossexuais) e em usuários de drogas ilícitas injetáveis. Outro grupo de risco para a aquisição do HBV inclui os profissionais da área de saúde, como dentistas, enfermeiros, médicos, funcionários de banco de sangue e de laboratórios.
A transmissão vertical do HBV de mães HBsAg e HBeAg positivo para o recém-nato durante o trabalho de parto é a principal via de contaminação observada em regiões de alta endemicidade, como no sudeste asiático e na África subsaahariana, sendo que o risco de cronificação, nestes casos, pode atingir 60% a 90%.
A freqüência da infecção pelo HBV e os modos de transmissão são marcadamente diferentes nas diversas regiões do globo. Nos Estados Unidos, com exceção do Alaska, onde a prevalência é alta, Europa Ocidental e Austrália a infecção pelo HBV é de baixa endemicidade, com ocorrência primária na idade adulta e taxas de cronificação de 0,2% a 0,9%.
Em contraste, a infecção pelo HBV é altamente endêmica na China, Sudeste Asiático, África sub-Saahariana, Ihas do Pacífico e em certas regiões do Oriente Médio, onde as taxas de prevalência da infecção crônica atingem 8% a 15%.
No Brasil evidenciou-se, em geral, baixa prevalência na Região Sul e alta prevalência na Região da Bacia Amazônica. (Brandão-Mello, et al., 2001; 2004; Brandão-Mello & Figueiredo Mendes, 2006, Brandão-Mello & Figueiredo Mendes, 2008; Focaccia , 2013,)
As hepatites virais são em sua grande maioria assintomáticas e seu diagnóstico repousa no diagnóstico imunosorológico através de testes de enzimaimunoensaio realizados por testagem rápida e em bancos de sangue e laboratorios. A OMS organizou um programa de erradicação das hepatites virais até 2030 baseado na identificação de maior numero de sujeitos e das campanhas de vacinação contra as hepatites virais A e B, que já apresentam vacinas disponíveis em quase todos os paises.
Cirrose Hepática e sua importância clinica
As hepatopatias crônicas são importantes causas de morbidade e mortalidade em todo o mundo. Admite-se que existam mais de 70 milhões de indivíduos infectados pelo vírus da hepatite C (HCV) e de mais de 350 milhões infectados pelo vírus da hepatite B (HBV), distribuídos pelos cinco continentes. Essas duas enfermidades podem se cronificar e complicar ocasionando o surgimento de cirroses e de carcinoma hepatocelular.
O consumo e abuso do álcool continua sendo outra importante causa de cirrose hepática, rivalizando-se as formas virais como as duas maiores etiologias da cirrose hepática
No Brasil estima-se que cerca de 1% da população esteja infectada pelo HCV e 0.5% a 1% pelo HBV. A hepatite crônica pelo HCV é uma das principais causas de cirrose e de indicação para o transplante hepático no mundo industrializado.
Além das cirroses de etiologia viral e alcoólica, extremamente prevalentes em todo o mundo, destacamos, também, a doença gordurosa não alcoolica do fígado e as hepatites crônicas e cirroses de natureza auto-imune, medicamentosas, principalmente pelo uso de alfametildopa, isoniazida, propiltiouracil, metabólicas, por sobrecarga de ferro (hemocromatose) e cobre (doença de Wilson), dentre outras.
Lembramos que as cirroses encontram-se, nos dias de hoje, dentre as dez principais causas de morte na população mundial, juntamente com as doenças cerebrovasculares, coronarianas, neoplasias, traumas e doenças renais.
O espectro de apresentação clínica dos pacientes com cirrose hepática pode compreender desde formas assintomáticas, nas quais os pacientes são identificados incidentalmente ao se submeterem a exames médicos periódicos e de rotina laboratorial, até formas de apresentação exuberante, florida, nas quais os pacientes exibem manifestações de insuficiência hepatocelular, com icterícia, diáteses hemorrágicas, ascite e hipertensão portal.
O Espectro da Doença Gordurosa Não Alcóolica do Fígado
A doença gordurosa não alcoolica do fígado (NAFLD na abreviatura inglesa) é uma desordem caracterizada pelo excesso de acúmulo de gordura (na forma de triglicerideos) nos hepatócitos (> 5% de conteúdo de gordura no fígado) referido como esteatose hepática.
Admite-se, hoje em dia, que a frequência de cirrose decorrente de NASH já ultrapassou àquela provocada pelo vírus da hepatite C, como a principal indicação de transplante hepático em adultos, com menos de 50 anos de idade.
A doença gordurosa não alcoolica (NAFLD) é atualmente a causa mais comum de alterações de enzimas hepáticas nos países ocidentais. De acordo com estudos populacionais usando ultrassonografia ou tomografia a prevalência de NAFLD é de 20% a 50%, sendo que com o emprego da RNM por espectroscopia a freqüência chega a ser de 45% em hispânicos, 33% em brancos e 24% na população negra nos EUA.
A prevalência de NAFLD chega a ser até maior em pacientes com outras comorbidades como Diabetes Mellitus tipo 2 (40% a 80%) e de 30% a 90% em obesos.
Por outro lado a recíproca também é verdadeira: pacientes com diabetes tem risco incrivelmente maior de desenvolver NASH, ainda mais naqueles com história familiar de diabetes; de morte por doença hepática crônica e cirrose e, é até 3 vezes maior o risco de morte por doença hepática crônica atribuída a presença de NASH.
Figado e COVID 19
Desde dezembro de 2019, um surto de infecção por um novo Coronavírus (SARS-CoV-2), iniciado em Wuhan (China), se tornou uma pandemia, promovendo séria ameaça à saúde publica em todo o mundo. O número crescente de casos (mais de 1 milhão até 05 de abril de 2020) atingiu proporções alarmantes na China, na Europa e nos EUA, e chegou ao Brasil em 26 de fevereiro de 2020.
A maioria dos casos de infecção pelo COVID-19 (> 80%) são assintomáticos ou com sintomas leves que se resolvem sem necessidade de tratamento específico. Entretanto, cerca de 15% podem evoluir com pneumonia intersticial grave e ter taxas de mortalidade de até 5%. Em geral, as formas graves decorrem de dano alveolar pulmonar e insuficiência respiratória grave (SARS).
O envolvimento hepático na infecção pelo COVID-19 foi objeto de estudo em, pelo menos, 7 séries de casos que analisaram os aspectos clínicos e serão resumidos a seguir em 5 tópicos distintos:
Manifestações hepáticas em pacientes sem hepatopatias prévias:
As manifestações clínicas da infecção pelo SARS-CoV-2 são predominantemente de febre (98%), fadiga (69%), tosse seca (59%), anorexia (39%), mialgia (34%), dispneia (31%), diarreia e náuseas (10%), segundo um estudo chinês que analisou mais de 1.099 pacientes.
Cerca de 2% a 11% dos casos de infecção pelo COVID 19 apresentavam anormalidades laboratoriais hepáticas. A frequência de elevação das aminotransferases variou de 20% a 53%, sendo esta ocorrência maior nos pacientes com manifestações clínicas mais graves (ALT, AST > 2 x limite superior da normalidade (LSN). Nos casos leves, o aumento das enzimas hepáticas parece ser transitório e sem repercussões clínicas, não sendo necessário nenhum tratamento específico.
Aumento das bilirrubinas e redução das concentrações de albumina são pouco frequentes, mas podem ocorrer, principalmente, nos casos de evolução mais grave. Nestes, observou-se também alterações da coagulação, como prolongamento do tempo de protrombina, plaquetopenia, fibrinólise, coagulação intravascular disseminada (CIVD) e episódios de tromboembolia pulmonar.
Manifestações hepáticas em pacientes com hepatopatias prévias:
Na China, cerca de 300 milhões de indivíduos são portadores de infecção pelos vírus das hepatites B (HBV) e C (HCV) ou apresentam doença hepática crônica de etiologia metabólica. Desta forma, não seria incomum a ocorrência de infecção pelo novo coronavírus em pacientes com doenças hepáticas prévias. Admite-se que 2% a 11% dos pacientes com COVID-19 na China apresentavam doenças hepáticas crônicas pré-existentes. Nos pacientes com hepatite crônica viral B ou C o tratamento antiviral deve ser mantido e deve se avaliar o melhor momento para o inicio da terapia naqueles à espera dos medicamentos.
É plausível que pacientes com doença hepática crônica e cirrose hepática, à semelhança dos diabéticos, hipertensos, cardiopatas, portadores de DPOC e insuficiência renal crônica, possam apresentar maior susceptibilidade a infecções graves pelo SARS-CoV-2, porém este fato precisa ser avaliado por estudos clínicos. Atenção especial deve ser dispensada aos pacientes com cirrose descompensada Child B ou C e aqueles com hepatopatias crônicas em idade avançada. Sinais de descompensação da cirrose como encefalopatia hepática, icterícia, ascite ou sangramento digestivo devem ser avaliados para a possibilidade de se relacionarem com o COVID-19.
Dr. Carlos Eduardo Brandão-Mello
Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH)
Membro Titular da Academia Nacional de Medicina (ANM)