Evento da ANM estabelece relações entre a pandemia de covid-19 e pobreza
“São pobres porque são doentes ou são doentes porque são pobres”? Este questionamento de Charles Booth dito em 1850, durante a pandemia de cólera, em Londres, sintetizou os debatese reflexões da última sessão da Academia Nacional de Medicina (ANM).
“Implicações da covid-19 em questões de saúde pública” foi o tema da live que procurou traçar paralelos e correlações entre a pandemia, os determinantes sociais e como o impacto tem sido distinto com consequências mais duras aos menos favorecidos.
O seminário on-line, que aconteceu no último dia 15 de abril, coordenado pelo acadêmico Paulo Buss, também trouxe visões a respeito dos impactos econômicos sobre o futuro do sistema de saúde pública e projetou visões para um cenário pós-pandêmico.
Na abertura, Buss apresentou alguns dos fatores considerados como determinantes sociais da saúde, ou seja, as condições sociais em que as pessoas vivem ou trabalham e que afetam diretamente o bem-estar dos indivíduos.
O acadêmico reforçou que é fundamental analisar os mapas sociais, incluindo aspectos como acesso à saneamento básico e à educação, o desemprego, condições de moradia e segurança alimentar, “pois eles têm impacto direto sobre a saúde e estruturam outros determinantes”, afirmou.
O evento contou com Sir Michael Marmot, professor da Universidade College de Londres e honorário da ANM. Marmot é autor do relatório “Build Back Fairer: the covid-19 Marmot Review” que aborda as desigualdades no mundo como um risco de mortalidade por covid-19. No documento, problemas de saúde, incluindo o fumo, álcool, obesidade, violência e abuso, a ausência de sistemas públicos e de recursos para saúde são apontados como de maior risco para covid-19. Em suas reflexões, o professor Marmot ainda sugere ações para o desenvolvimento saudável das crianças e dos jovens e a vida de adultos, além de se pensar em lugares sustentáveis e saudáveis.
Marmot falou muito sobre “fazer algo, fazer mais e fazer melhor”. Trouxe diversos exemplos da saúde e do impacto da covid-19 em países pobres e em desenvolvimento como Afeganistão, Egito, Iraque, Paquistão, Sudão, entre outros, e questões variadas como sistemas de saneamento, educação e que terão impacto na saúde. Além disso, apontou algumas consequências como os conflitos, as ondas de refugiados no mundo e os impactos econômico, social, ambiental e até cultural.
Outro participantes foi o vice-diretor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Jarbas Barbosa, que palestrou sobre determinantes sociais da saúde e pandemia nas Américas.
O representante da Opas apresentou o relatório da Comissão das Américas que ilustra como a pandemia tem afetado de forma mais contundente as classes mais pobres, não só no Brasil, mas a América Latina e mostrou como, historicamente, as pandemias não são neutras socialmente.
Segundo ele, 44 estudos mostraram como grupos em maior desvantagem social são impactados negativamente pela covid-19 com maior taxa de infecção, mais chances de apresentar as formas graves da doença, maior dificuldade do acesso ao tratamento e mortalidade mais elevada.
Ele defendeu uma abordagem multisetorial para ações do governo e que o caminho para 2030 é pós-pandêmico e deve-se levar em conta tudo que foi aprendido durante a crise sanitária. Segundo ele, devemos retornarmos, não como em 2019, mas com novas visões. “A busca por equidade deve nortear a elaboração das políticas públicas de saúde com a participação das populações mais vulneráveis”, encerrou Jarbas.
Na sequência, o economista da Fiocruz, Carlos Gadelha, falou sobre o que deve mudar na economia pós-pandemia e relacionou a vacina contra a covid-19 como principal interface entre a economia e saúde: “quem não sabe produzir ciência e tecnologia, deixa sua população vulnerável”, citando que a desigualdade também se revela no acesso às doses de imunizantes. “É necessário ver a saúde como desenvolvimento social, parte do desenvolvimento econômico”, finalizou Gadelha.
O sistema de saúde no cenário pós-pandêmico também foi alvo de análises deAna Maria Malik, da Fundação Getúlio Vargas, que mostrou como a pandemia evidenciou a relevância do Sistema Único de Saúde, mas também escancarou suas fragilidades. “Falta planejamento e governança no SUS”. E segundo ela, o que podemos esperar no cenário pós-covid é o entendimento de que “para uma sociedade adoecida, não são serviços de saúde que resolvem. A saúde começa em casa.”
A população que vive na periferia também foi representada no evento. Alan Brum, sociólogo e representante da ONG Raízes em Movimento, do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, falou sobre o seu trabalho para o desenvolvimento do plano de enfrentamento da covid nas favelas, com um edital junto à Fiocruz, voltado para ações nas comunidades.
O sociólogo reforçou que os estudos feitos, atualmente, não levam em consideração a fragilidade estrutural das favelas, mas lembrou de pesquisa do médico Roberto Medronho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que aponta a inserção da população periférica na centralidade das discussões como melhor estratégia para conter a propagação do coronavírus. Ele mencionou ainda que as questões raciais também impactam na gravidade da pandemia, quando mais negros estão morrendo por covid-19.
“Precisamos pensar o pós-pandemia e a extensão das pesquisas para entender os impactos sobre as favelas porque a situação se acirrará pela inequidade no tratamento das populações mais vulneráveis. Então para pensar saúde nas favelas, eu entendo que há necessidade de criarmos interlocuções locais.”, disse Alan.
O médicoAntônio Braga, do Programa Jovens Lideranças Médicas ANM, apontou a covid-19 como uma perfeita classificação de sindemia, quando um ou mais problemas de saúde e suas complicações afetam mutuamente uma população em seu contexto social e econômico. Ele reforçou a importância de investimento em políticas públicas de saúde, em ações de atenção primária e, em especial, nos desertos sanitários, locais de maior vulnerabilidade social, como principais estratégias para reduzir as inequidades em saúde.