Com uma agenda científica repleta de Simpósios que abordam temas de grande relevância para a atualidade, a Academia Nacional de Medicina recebeu, na última quinta-feira (27), um de seus ilustres membros para apresentar a conferência “O Médico ao Longo da História”. Silvano Raia, pioneiro dos transplantes de fígado no Brasil, fez um apanhado dos principais avanços e perspectivas para a profissão médica e para a medicina no mundo, que vivenciou nas últimas décadas importantes avanços.
Iniciou sua apresentação destacando que a evolução da figura do médico coincide com a evolução da própria prática da medicina. Para retratar esta afirmativa, um de seus diapositivos ilustrou representação análoga ao calendário cósmico de Carl Sagan, trazendo os principais avanços responsáveis por modificar o entendimento da medicina, chamando atenção para o fato de que, nesta representação, todas os principais avanços tecnológicos estariam concentrados no mês de dezembro, evidenciando a rapidez com a qual os processos se intensificaram nos últimos anos.
Chamou atenção para o fato de que, desde a Escola Ayuverda (que entendia a “boa saúde” como o equilíbrio do espírito do homem e valorizava as características humanas do médico) até a Grécia antiga, o médico esteve no centro da sociedade, desempenhando um importante papel no desenvolvimento dos povos e gozando de grande prestígio. Após um longo período no qual este papel foi se tornando cada vez mais secundário, Silvano Raia destacou a grande transformação sofrida na entrada no século XX, que inaugura a transição da visão da medicina como arte para a visão da medicina como ciência biológica.
Já no século XXI, iniciam-se as transformações tecnológicas que poderão culminar em mais uma importante transição na forma com a qual encaramos a medicina: a transição de ciência biológica para ciência exata, graças principalmente aos avanços na chamada biotecnologia, com importantes desdobramentos na engenharia genética. Além deste fato, o Acadêmico também abordou o uso cada vez maior da chamada Telemedicina, que trata do uso das tecnologias da informação e telecomunicações para o fornecimento de informação e atenção médica a pacientes e outros profissionais de saúde situados em locais distantes. Ressaltou, todavia, que o uso desta modalidade reduz a importância da relação médico-paciente e do contato humano na observação clínica e no desenvolvimento do diagnóstico. Abordou também a chamada inteligência artificial médica, que está relacionada à capacidade das máquinas de imitar o comportamento e pensamento humanos – chegando a analisar dados e as imagens do exame, de forma a distinguir urgências em exames mais críticos.
Seguiu discorrendo sobre as importantes implicações no desenvolvimento da técnica CRISPR-Cas9, nome dado para técnica de edição genética utilizada para modificar sequências de DNA precisamente e que vem revolucionando a biotecnologia nos últimos anos. Segundo o Dr. Silvano Raia, a técnica irá alterar a forma com a qual encaramos o processo da doença e até mesmo o ato de adoecer. Na sequência, mostrou uma série de aplicações práticas para a técnica, como a prevenção de doenças por meio da seleção de embriões e óvulos fecundados em casais com predisposição genética para doenças como distrofia muscular, hemofilia, rim policístico, mucoviscidose, etc. Há, ainda, aplicações associadas a correções de defeitos genéticos pós-nascimento. O Acadêmico chamou atenção para o fato de que estas técnicas são voltadas para a cura de doenças, não somente seu tratamento, o que representa uma alteração importante de paradigma para a medicina.
Na sequência, abordou os estudos que vem sendo desenvolvidos acerca do xenotransplante, afirmando que nos últimos anos, pesquisadores liderados por George Church, Ph.D., professor de Genética na Harvard Medical School (HMS) deram passos importantes em direção à compatibilização das suas células presentes em órgãos de porcos com o corpo humano. Também neste caso, a engenharia genética se beneficia da técnica CRISPR-Cas9.
Ao longo de sua conferência, Silvano Raia também discorreu sobre os desdobramentos éticos associados aos avanços científicos e tecnológicos dos últimos anos. Utilizou como exemplo o caso do Dr. He Jiankui que, em 2018, apresentou caso envolvendo a edição gênica de dois bebês gêmeas humanas – a modificação garantiria resistência ao vírus HIV, que seria transmitida para as gerações seguintes. Após a repercussão negativa do caso, iniciou-se forte debate internacional acerca do risco do uso da edição genética para retomar práticas nocivas como a eugenia, dando origem a uma nova corrida por uma “raça superior”, tal qual a observada no século XX. Acerca desde assunto, o Acadêmico ressaltou que é preciso pensar nos efeitos de um tratamento para além de um único paciente, refletindo sobre os impactos de determinada descoberta científica para a humanidade como um todo.
Finalizou sua conferência fazendo uma reflexão sobre a evolução do objetivo da medicina ao longo do tempo, que, em seus primórdios, se limitava a estimular a resignação dos pacientes com relação à sua condição e que atualmente já se propõe a prolongar a vida e, em última instância, evitar a morte.
Após a conferência, seguiu-se rica rodada de discussões, da qual participaram os Acadêmicos Antonio Nardi, Sergio Novis e Marcello Barcinski. O Presidente Jorge Alberto Costa e Silva também fez importantes colocações, destacando que, apesar de termos inúmeros avanços tecnológicos a nosso dispor, é preciso que médicos e cientistas sejam incentivados a pensar criticamente acerca do significado destes avanços. Uma “metamedicina” serviria, portanto, ao propósito de garantir que novas descobertas não sejam esvaziadas de seu objetivo maior, que é proporcionar saúde e bem-estar à humanidade. Referenciou este como um momento especial da medicina, apontando para os desafios também no ensino médico, afirmando que “ensinar medicina hoje é ensinar a desaprender”.