DOENÇA DO REFLUXO GASTROESOFAGEANO

29/09/2015

INTRODUÇÃO

A História da Medicina nos ensina que buscamos compreender o binômio saúde/doença, desde sempre, a partir dos diversos modelos que a cultura de cada época criava para entender a vida e a natureza.

O modelo científico contemporâneo, baseado na observação dos fenômenos biológicos, na elaboração de hipóteses que os expliquem, na criação de modelos experimentais que os avaliem, na interpretação dos seus resultados e nas conclusões que comprovem ou não estas hipóteses, parece ser o que mais se aproxima da possibilidade da compreensão do binômio citado: saúde/doença.

Não discutiremos esses dois conceitos: o que é saúde e o que é doença. Apenas afirmarei, para o melhor entendimento do texto, que saúde é um conceito subjetivo e doença é objetivo.

Melhor dizendo, um indivíduo pode se achar e dizer com saúde, e estar correto, mesmo que uma doença esteja em curso – quiçá mesmo fatal em curto espaço de tempo! Um exemplo: a aterosclerose sistêmica, envolvendo as artérias coronárias, é assintomática durante longo período da vida do indivíduo, transforma-o em doente quando o infarto agudo do miocárdio acontece! Seu evento terminal e, muitas vezes também, fatal para o paciente.

“Uma pessoa estará doente se (e somente se) necessitar de auxílio subjetivo, clínico ou social, em virtude do mau funcionamento físico, psíquico ou psicofísico do seu organismo.”

Como vemos nesta afirmação de Leonidas Hengenberg (Doença: um estudo filosófico. Ed. FIOCRUZ, 1998), doença e doente não são sinônimos!

Neste texto, procuraremos informar sobre a doença do refluxo gastroesofageano, o que é o doente que refluxa e, principalmente, quais as consequências para a saúde e a vida dos indivíduos com a doença – sendo doentes ou não.

O QUE É A DOENÇA?

O nome a define: é o refluxo gastroesofageano!

Qual seja, o material contido no estômago que, ao invés de progredir pelo trânsito (peristalse) normal para o duodeno, volta (reflui), parcial ou totalmente, para o esôfago. Este é o mecanismo básico dessa doença.

A noção comum que ácido queima bem se aplica a esta doença: tanto os sintomas como as consequências locais do refluxo estão diretamente relacionadas à presença do ácido clorídrico no esôfago.

Sabemos que o estômago participa dos processos digestivos pelas substâncias que ele secreta e vão agir tanto localmente como a distância. No primeiro caso, todos o conhecem, este é o ácido clorídrico que amolece os alimentos e facilita o início da digestão das proteínas pela ação da pepsina (outra substância produzida no estômago). Para nossa doença, esta é a secreção que nos interessa porque todas as consequências negativas para a saúde das pessoas estão, na quase totalidade dos casos, relacionadas ao refluxo ácido, de ácido clorídrico – também conhecido como ácido muriático.

De outro modo, vale registrar que há casos em que o fenômeno básico que determina a doença e o doente não é o refluxo de ácido clorídrico (refluxo ácido). Mais excepcionalmente, e não nos deteremos em detalhá-lo, ocorre o refluxo de material não ácido, alcalino, a partir da presença de líquido biliar no estômago. Este material também é agressivo para o esôfago e pode causar a doença.

POR QUÊ?

Sabe-se que o refluxo gastroesofageano é um fenômeno fisiológico. Então, por que há uma doença com este nome? Se todos nós refluímos naturalmente, ao longo das 24 horas do dia, por que algumas pessoas terão a doença e algumas ficarão doentes; serão sintomáticos?

Diversos estudos epidemiológicos nos ensinam que esta doença (DRGE) causa sintomas em cerca de 20 a 40% da população adulta do mundo ocidental. Na grande maioria destes casos, os sintomas serão intermitentes, passageiros, e, mais importante, não determinam qualquer dano maior à saúde das pessoas ao longo das suas vidas. Exceto o incômodo nos curtos períodos sintomáticos que, muitas vezes, são pontuais.

Sabemos, hoje, como isto acontece. Há um desequilíbrio entre a quantidade de material refluído do estômago para o esôfago e a capacidade máxima de sua neutralização. Chama-se a isto de tamponamento ácido.

Dito de outra forma, o sistema digestório (nome correto para o antigamente chamado aparelho digestivo) tem mecanismos naturais de proteção para o esôfago exposto, naturalmente, ao ácido clorídrico. Os mais importantes neutralizadores são a peristalse e a saliva. O primeiro garante o esvaziamento do conteúdo esofageano em tempos fisiológicos, normais: chama-se o clearence ácido. O segundo, ao tamponar o ácido clorídrico excedente dentro do esôfago, bloqueia seu efeito cáustico ou abrasivo.

Há, também, fatores anatômicos que, normalmente previnem o refluxo, e, quando não, favorecem um refluxo aumentado tanto em tempo como em quantidade. Cito os dois principais: o esfíncter esofageano inferior (estrutura muscular na junção do esôfago com o estômago) e a hérnia do hiato esofageano.

Este complexo protetor e favorecedor, quando em equilíbrio, garante o seu funcionamento normal. Não há doença e não há doente. Quando em desequilíbrio, há doença e pode haver o doente.

Vale informar, por último, que há pessoas que referem os sintomas da doença do refluxo gastroesofageano e a utilização de todos os exames complementares disponíveis para o seu diagnóstico não conseguem identificar o desequilíbrio funcional acima citado. É o que, mais recentemente, definimos como o subgrupo do esôfago sensível (hipersensibilidade visceral). Não nos aprofundaremos, aqui, na sua caracterização mais completa.

COMO?

Vimos que o resultado do desequilíbrio entre as funções protetoras e as favorecedoras do refluxo gastroesofageano, presença do ácido clorídrico no esôfago, e a capacidade do organismo de evitar que ele aí permaneça por tempo prolongado, determina a presença da doença e do doente. Tanto um como o outro, dependentes do efeito cáustico (queimadura) do ácido que promove uma reação inflamatória local, de intensidade variável, ao longo do tempo. Esta inflamação, quando identificada, é chamada de esofagite.

Vale lembrar que a DRGE não é sinônimo de esofagite!

Sabe-se que, aproximadamente, metade dos pacientes com a DRGE apresentam um esôfago inflamado (esofagite) e a outra metade não.

O DOENTE

Sabemos o que é a doença e como ela afeta o esôfago. Vejamos o doente. O que ele sente? O que o incomoda? O que o preocupa?

O sintoma principal, mais comum e, do ponto de vista prático, presente na totalidade dos pacientes é a queimação retroesternal: uma ardência ascendente, referida na região central do peito, por detrás do osso esterno, na maioria das vezes associada à posição deitada, relacionada ou não à alimentação. É um sintoma ácido dependente, de origem esofageana, que chamamos de pirose para diferenciar da azia, mais relacionada à sua origem no estômago.

Geralmente, a pessoa que assim relata o seu incômodo nos define a presença do refluxo gastroesofageano. Simples assim!

Pode haver um complexo sintomático que caberá ao médico definir estar ou não associado ao refluxo gastroesofageano. Por exemplo, tosse, engasgos, rouquidão, dor precordial atípica, eructações, dificuldade da passagem do alimento deglutido (disfagia), entre outros, podem ou não estar relacionados à doença. Só ao médico compete esclarecer suas possíveis causas ou a sua associação com a doença do refluxo. Estes são os sintomas e os incômodos relatados pelos pacientes. E suas preocupações?

Como em todas as situações das chamadas doenças crônicas e esta é uma delas, para além das questões relacionadas aos prejuízos físicos delas decorrentes, na doença do refluxo gastroesofageano a maior preocupação dos pacientes, ao longo do tempo, referem-se ao comprometimento da sua qualidade de vida. Mais a frente, comentaremos como este componente influencia algumas decisões quanto a melhor forma de tratá-los.

COMO SE DIAGNOSTICA?

Seguindo o modelo proposto, vemos que a DRGE apresenta alterações subjetivas (sintomas) e objetivas (exames complementares).

O sintoma principal é a queimação (ardência) sentida no meio do tórax (peito) e com uma característica marcante: ela vem do estômago em direção à garganta (ascendente) e que, às vezes, regurgita um líquido de sabor azedo. A esta azia, os médicos dão o nome de pirose.

Em termos práticos, para qualquer pessoa que apresente este tipo de sintoma, pirose, de forma recorrente ou contínua, o médico está autorizado a diagnosticar a doença do refluxo gastroesofageano! Simples assim.

Há que se informar que o complexo sintomático da DRGE, não complicada, pode ser muito mais extenso. Lembremos alguns, tais como, dor torácica atípica, tosse, rouquidão, aerofagia, eructações, síndrome da apneia do sono, engasgos, dificuldade de deglutição entre outras. No entanto, reforcemos que o sintoma principal é a pirose!

As alterações objetivas da DRGE serão identificadas pelos exames complementares pertinentes. E há o exame chamado padrão ouro para o refluxo ácido: a pHmetria esofageana!

Como o nome indica, é um exame que mede o pH (acidez) do esôfago, identificando quando há ácido demais e por tempo prolongado nesta localização. Uma pequena sonda introduzida no esôfago, pelo nariz, aí permanece por 24h medindo o seu pH e orienta-se o paciente a registrar os seus sintomas durante este período. A interpretação do exame indica os valores normais ou anormais da acidez no esôfago, mas, principalmente, o seu índice de sintomas: quantas vezes o valor do pH esteve anormal e houve associação com o sintoma do paciente, a pirose, qual seja, o refluxo é o causador do sintoma!

O outro exame complementar muito indicado para os pacientes com azia/pirose, associado ou não a outros do complexo sintomático acima descrito, é a endoscopia digestiva alta (EDA).

Como dissemos anteriormente, nem todo paciente com a DRGE apresenta o esôfago inflamado (esofagite). O uso da EDA permitiu-nos estabelecer este conceito macroscópico; a visualização da superfície do esôfago através do endoscópio. Há, inclusive, classificações endoscópicas para a intensidade da inflamação. Não cabe aqui detalhá-las.

A biópsia, retirada de fragmentos da mucosa esofageana para examiná-la no microscópio, em todos os casos mostrará algum grau de inflamação que será convenientemente avaliada pelo médico: seu significado e prognóstico.

Em síntese, sabemos que a EDA não é um exame indicado para o diagnóstico da DRGE! Ela serve, muito bem, para identificarmos os pacientes que apresentam a esofagite péptica macroscópica que, potencialmente, tem mais chances de evoluírem de forma clínica mais complexa.

Complementarmente, nos indivíduos sintomáticos, sua indicação confirma-se quando estão presentes, além da azia/pirose, os chamados sinais de alarme – dificuldade de engolir (disfagia), emagrecimento e anemia, principalmente, em pessoas com mais de 40 anos de idade.

No entanto, a grande maioria dos portadores da DRGE apresenta, como já dissemos, formas simples, não complicadas da doença.

Então, vamos tratá-las!

COMO SE TRATA?

De antemão e de forma geral, podemos dizer que o tratamento clínico dos pacientes com a DRGE é um dos mais gratificantes. Por quê?

Como vimos, há um bom conhecimento das anormalidades funcionais que determinam o refluxo e do mecanismo gerador da queixa clínica está estabelecido: ácido clorídrico no esôfago!

Por conseguinte, se conseguirmos neutralizar esse ácido ou bloquear a sua produção teremos um bom controle dos sintomas, do doente.

Resumidamente, podemos dizer que nos indivíduos sintomáticos de modo intermitente ou esporádico, a melhor alternativa será neutralizar este ácido com medicação antiácida nos momentos em que o sintoma aparecer. São produtos tradicionais (os antiácidos líquidos ou pastilhas mastigáveis) a base de bicarbonato, magnésio, cálcio, alumínio, alginato, magaldrato entre outros. Há vários nomes comerciais e o médico saberá indicar o produto e a melhor maneira de usá-lo.

Nestes casos mais simples, de um modo geral, algumas medidas comportamentais e alimentares ajudam bastante. Por exemplo, aqueles que apresentam um incômodo maior noturno, ao dormir, beneficiam-se com o cuidado de uma pequena última refeição no dia, entre 3 a 4 horas antes de se deitar, assim como, se persistente o incômodo, elevar a cabeceira da cama em, pelo menos, 15cm – como um plano inclinado.

Na questão do cardápio, as evidências não permitem recomendações absolutas quanto ao tipo ou conteúdo deste ou daquele alimento que determinem efeitos benéficos ou deletérios para a doença ou para o paciente. Há poucas exceções, tais como, o álcool (efeito cáustico), o café (aumenta a secreção ácida), o cigarro (a nicotina favorece o refluxo), as bebidas gaseificadas ou muito quentes. Além disto, sob o ponto de vista prático, uma boa e simples recomendação é ingerir o que “lhe cai bem” e evitar o que “lhe cai mal”.

Mais recentemente, a descoberta e o desenvolvimento de medicações capazes de interferir na produção da secreção ácida pelo estômago representou um enorme avanço no tratamento das doenças e dos doentes ácido dependentes: a doença é causada pela exposição ao ácido clorídrico e os sintomas decorrem da sua ação na mucosa, seja do esôfago, do estômago ou do duodeno (DRGE/esofagite, gastrite/úlcera ou duodenite/úlcera).

Estes medicamentos são de duas classes farmacológicas distintas, mas de resultados práticos (terapêuticos) muito semelhantes. São muito bons!

Uns são antagonistas dos receptores do tipo 2 da histamina na mucosa gástrica. Estes receptores são uma via importante para a secreção ácida do estômago. Inibir o seu funcionamento é uma ótima ação terapêutica. E isto eles conseguem. Os mais conhecidos, e ainda usados, são a cimetidina, a ranitidina, a famotidina e a nizatidina. O médico saberá prescrevê-los.

Outros são os inibidores/bloqueadores da bomba de prótons da mucosa gástrica. Esta bomba é a etapa inicial que coordena as vias da mucosa gástrica para a secreção do ácido clorídrico. Como vimos, uma dessas vias é a dos receptores de histamina, do tipo 2. Há outras e não entraremos nestes detalhes. Claro está que, tendo uma via primitiva comum você tem a chance muito maior de atingir seu objetivo terapêutico primário nas doenças/doentes ácido clorídrico dependentes: controlar os sintomas e cicatrizar as lesões, úlceras, erosões ou inflamações.

Este é o grupo farmacológico de escolha, hoje em dia, para o tratamento destes pacientes. Seus nomes, muito conhecidos, são: omeprazol, pantoprazol, rabeprazol, lanzoprazol e esomeprazol. De efetividade imediata muito semelhante à dos antagonistas dos receptores da histamina tipo 2, eles são muito superiores àqueles quando necessário usar estes medicamentos por períodos prolongados de tempo (>30 dias). E é este o caso do tratamento da DRGE.

Todas as recomendações terapêuticas com estes medicamentos para a DRGE, prescrevem um período inicial mínimo de 8 semanas (2 meses). Geralmente, com ótimos resultados. Um bom número de pacientes recidivará os sintomas nos primeiros 12 meses após o tratamento inicial. Então, recomenda-se novo ciclo terapêutico com 6 meses de duração com esses medicamentos. Alguns, poucos, necessitarão ficar em tratamento permanente. Dá a vantagem dos inibidores sobre os antagonistas, além de uma menor incidência de efeitos colaterais.

COMO SE ACOMPANHA?

Como toda doença com potencial de cronicidade, aqui, períodos sintomáticos intercalando períodos assintomáticos, devemos manter uma vigilância eficaz sobre estas pessoas. No mais das vezes, informar ao indivíduo esta possibilidade da volta dos sintomas e sem que isto represente um agravamento da doença. Se acontecer, há que ser reavaliado pelo médico para estabelecer a melhor conduta diagnóstica e terapêutica a cada recidiva.

Mantendo esta vigilância eficaz, identificamos ao longo do tempo, três grupos principais de evolução clínica. Um primeiro, aquele que controla facilmente os sintomas com a medicação e os cuidados habituais. Naturalmente, é o que se basta.

Outro, aquele que apresenta recidivas frequentes e, na maioria das vezes, ocorrendo em tempo mais ou menos variável, após um ciclo efetivo de tratamento medicamentoso. É um grupo que, ao longo desse tempo variável, oferece-se a possibilidade do tratamento cirúrgico. Falaremos sobre isto um pouco mais a frente.

Por fim, há um terceiro grupo de indivíduos portadores da DRGE que só conseguem o controle sintomático da doença sob o uso continuado de medicação, um inibidor da bomba de prótons. Este, ao longo do tempo, é o melhor caso para o tratamento cirúrgico.

No acompanhamento clínico destes pacientes, mister se faz citar duas outras situações (complicações): o esôfago de Barrett e a estenose cicatricial.

ESOFAGO DE BARRETT

Esta figura demonstra o que é o esôfago de Barrett: a presença de mucosa gástrica no esôfago. O refluxo ácido crônico determina esta reação adaptativa que pode ser considerada uma complicação evolutiva da DRGE. Sua principal importância clínica, muito além do sintoma, refere-se ao potencial evolutivo para o câncer no esôfago. Uma vez diagnosticada, obriga a um controle periódico por endoscopia e biópsias desta área marcada com a seta na figur

A estenose cicatricial, como o nome indica, é o fechamento progressivo da passagem do esôfago para o estômago. Nesta eventualidade, surge um dos sinais de alarme já citados: a disfagia (a dificuldade de engolir o alimento). É uma situação que merecerá um cuidado especializado.

PROGNÓSTICO

É bom!

A grande maioria dos pacientes conseguirá um bom controle clínico, ao longo da vida, seguindo estas orientações simples.

Citamos, anteriormente, a indicação da cirurgia para o tratamento da DRGE. Quando indicar?

Sabemos existir uma técnica cirúrgica muito eficiente no controle, em longo prazo, do refluxo gastroesofageano. Sem entrarmos em detalhes técnicos, é a fundoplicatura a Nissen, ela cria um reforço na junção do esôfago com o estômago e consegue diminuir significativamente o refluxo. Muitas vezes, será necessário associar a correção da hérnia do hiato esofageano, como vimos, fator anatômico favorecedor do refluxo. Quando bem indicadas, seu resultado prático é excelente. Sua melhor indicação eletiva é o paciente que melhor responde, sintomaticamente, aos inibidores da bomba de prótons.

As dúvidas que persistirem podem ser esclarecidas com o médico assistente do paciente.

Autor:

José Augusto da Silva Messias – Membro Titular da Academia Nacional de Medicina

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