O termo nefrotoxicidade é empregado para caracterizar qualquer efeito deletério sobre a função renal causado por um agente químico específico. Embora algumas substâncias endógenas (produzidas no próprio organismo) possam produzir efeitos nefrotóxicos, o amplo predomínio nas nefrotoxicidades se deve aos xenobióticos. Xenobiótico é toda substância química, oriunda da indústria ou da natureza, que não é encontrada no organismo humano. Diversas categorias de xenobióticos se encontram cada vez mais presentes no meio ambiente das sociedades modernas, sobretudo na forma de derivados de petróleo, metais pesados, pesticidas, defensores agrícolas, produtos de limpeza, resíduos industriais, conservantes alimentares e fármacos. A indústria farmacêutica é responsável pela produção dos xenobióticos utilizados com finalidade diagnóstica e/ou terapêutica. O corpo humano possui um sistema de degradação de xenobióticos (citocromos P 450) que é fundamental para metabolizar as substâncias estranhas e desintoxicar o organismo. Os rins são uma verdadeira “estação de tratamento” para os rejeitos metabólicos produzidos no meio interno e representam a principal via de excreção dos xenobióticos e de seus metabólitos. Dadas as suas propriedades fisiológicas, as células renais podem ficam expostas a concentrações de xenobióticos até 100 vezes maiores do que aquelas presentes na circulação sanguínea, o que torna os rins alvos moleculares vulneráveis para diferentes categorias de nefrotoxinas.
A medicina praticada no século XXI expandiu a exposição dos pacientes a uma série de substâncias farmacológicas que, além de seus efeitos desejados, produzem efeitos secundários indesejáveis sobre a função renal, ou seja, nefrotoxicidade. Medicamentos nefrotóxicos são responsáveis por cerca um terço das falências renais agudas adquiridas em ambientes hospitalares, assim como por um número ainda incalculável de disfunções renais que ocorrem em pacientes submetidos a tratamentos ambulatoriais. Há 2 tipos de fatores de risco associados ao desenvolvimento de nefrotoxicidade:
1- fatores de risco inerentes às drogas, diretamente relacionados às doses e as suas respectivas propriedades farmacológicas no microambiente renal;
2- fatores de risco inerentes aos indivíduos, dentre eles a idade, o sexo, a polifarmácia e a presença de doenças crônicas, incluindo doença renal prévia, doenças cardiovasculares, doenças hepáticas, doenças intestinais, desidratação e doenças metabólicas, como o diabetes.
A nefrotoxicidade subclínica representa um dos maiores desafios diagnósticos para o clínico, exigindo discernimento, conhecimento e experiência para a sua identificação, sobretudo porque ainda não dispomos de marcadores biológicos específicos de nefrotoxicidade. Considerando que a função renal é composta de várias etapas fisiológicas (aporte de sangue pelas artérias renais, filtração glomerular, reabsorção e secreção tubular para a formação de urina e eliminação da urina pela via urogenital), mecanismos nefrotóxicos distintos presentes em diferentes drogas atuam comprometendo uma ou mais destas etapas. As consequências clínicas da nefrotoxicidade variam desde distúrbios hidroleletrolíticos até quadros de insuficiência renal aguda temporária e degeneração progressiva do órgão, com insuficiência renal crônica irreversível. Vários grupos de medicamentos amplamente utilizados na prática clínica são nefrotóxicos, tais como: anti-inflamatórios não hormonais, antihipertensivos (inibidores de enzima de conversão e bloqueadores de receptor de angiotensina II), antibióticos, antivirais, antifúngicos, bifosfonados, antineoplásicos, imunossupressores, antidepressivos a base de lítio, inibidores da acidificação gástrica, estatinas, analgésicos e agentes osmóticos, como meios de contraste radiológicos.
Características de algumas destas drogas nefrotóxicas são relatadas a seguir:
Anti-inflamatórios não hormonais (AINHs) – Os AINHs são os medicamentos mais vendidos e mais prescritos no mundo, dadas as suas propriedades analgésica, antitérmica, anti-inflamatória e antitrombótica, inibindo a síntese de prostaglandinas (PGs), através da inativação da enzima cicloxigenase (COX). No Brasil, com o agravante de que a venda não é controlada, o consumo elevado não depende de prescrição médica para os seguintes AINHs: salicilatos (aspirina, salicilato de sódio e trisalicilatos), derivados da pirazolona (fenilbutazona, oxifenilbutazona e feprazona), ácidos indolacéticos (indometacina, solindaco), ácidos heteroaliacéticos (tolmetina, diclofenaco e aceclofenco), ácidos arilpropiônicos (naproxeno, ibuprofeno, fenoprofeno e cetoprofeno), ácidos antranílicos ( mefrenâmico, flufenâmico e meclofenâmico), àcidos enólicos (piroxicam, tenoxicam e meloxicam), alcalonas (nabumetona) e a nimesulida.
A nefrotoxicidade dos AINHs está relacionada à inibição das PGs comprometendo a perfusão sanguínea renal – pois as PGs vasodilatadoras antagonizam os efeitos vasoconstritores da angiotensina e das catecolaminas – e pode causar insuficiência renal aguda ou crônica, síndrome nefrótica, necrose de papila, necrose tubular aguda e nefrite intersticial aguda. A hipercalemia (elevação do potássio no sangue) associada à acidose metabólica resultante da inibição da COX é uma complicação potencialmente fatal que é mais frequente quando já existe insuficiência renal ou cardíaca, hipovolemia, hipotensão, cirrose ou ascite, nefrite lúpica ou síndrome nefrótica que diminuem a excreção de potássio corporal. Os idosos são mais vulneráveis a estes medicamentos por já terem redução da filtração glomerular e maior dependência do sistema de prostaglandinas para manter o fluxo plasmático renal. Os AINHs, sobretudo os derivados pirazolônicos, também podem produzir efeito antidiurético, com aumento de até 50% no volume plasmático, sendo assim capaz de causar edema, hipertensão e descompensação cardíaca. Em pacientes hipertensos, uma das primeiras manifestações de nefrotoxicidade pode ser a redução do efeito das medicações anti-hipertensivas com descontrole da pressão arterial.
O uso prolongado e o abuso de associações entre mais de um AINHs se relacionam à maior nefrotoxicidade. As formas de injúria renal incluem necrose papilar e nefrite intersticial crônica. Nestes casos, o dano renal costuma ser insidioso, com diminuição assintomática da função renal e da capacidade de concentração urinária, com progressão para insuficiência renal crônica irreversível. Este quadro é mais frequente em mulheres e, não raramente, associado à infecções urinárias de repetição.
Inibidores de enzima de conversão (IEC) e bloqueadores de receptor de angiotensina II (BRA) – são drogas amplamente utilizadas para tratamento da hipertensão arterial e para retardar a progressão da nefropatia diabética. Estas drogas bloqueiam o efeito da enzima angiotensina II, uma substância que tem um papel crítico no mecanismo de autoregulação da filtração glomerular. Embora o bloqueio farmacológico desta enzima possa ser bem tolerado na maioria dos pacientes, em indivíduos com condições predisponentes (estenose de artéria renal, hipovolemia, uso concomitante de AINHs, ciclosporina ou tacrolimus), a perda da autoregulação pelo efeito destes medicamentos pode precipitar insuficiência renal aguda.
Antibióticos – O uso de antibióticos é uma causa comum de nefrotoxicidade e as drogas mais frequentemente associadas à disfunção renal são: aminoglicosídeos, sulfametoxazol-trimetoprim, sulfadiazina, vancomicina, ciprofloxacin, cefalosporinas, penicilinas e polimixinas. Os mecanismos de toxicidade de cada antibiótico variam em função de suas propriedades farmacológicas. As lesões mais frequentemente encontradas são a necrose tubular aguda, a nefrite tubulointersticial e a cristalúria. Devido aos seus graves efeitos colaterais, o emprego de antibióticos deve ser criterioso e as doses prescritas devem ser ajustadas individualmente, considerando-se a capacidade de função renal de cada paciente. Se estes cuidados não forem observados, as doses cumulativas administradas representam uma superposição periódica de insultos nefrotóxicos.
Agentes antivirais – O aciclovir, o foscarnet e os antiretrovirais (tenofovir, indinavir, abacavir, ritonavir e atazanavir) são drogas empregadas no tratamento de doenças virais como herpesvírus, citomegalovírus e HIV. Devido aos diferentes mecanismos moleculares, a nefrotoxicidade destes agentes pode ocasionar insuficiência renal aguda, insuficiência renal crônica, síndrome de Fanconi, nefrolitíase e distúrbios eletrolíticos variáveis (hipomagnesemia, hipocalcemia, hipocalemia e hipo ou hiperfosfatemia). Os medicamentos de uso endovenoso podem ter nefrotoxicidade reduzida com a expansão adequada do volume sanguíneo e uma infusão venosa feita de forma lenta e com baixas doses destes fármacos.
Agentes antifúngicos – A anfotericina B, antifúngico utilizado no tratamento de infecções graves, apresenta propriedade nefrotóxica dose-dependente. A droga é utilizada nas formulações clássica e lipossomal, sendo esta última dotada de menor nefrotoxicidade. O seu mecanismo de lesão renal envolve toxicidade direta nas células tubulares renais e é capaz de produzir acidose tubular renal, defeitos de concentração urinária, distúrbios eletrolíticos e insuficiência renal aguda.
Bifosfonados – Os bifosfonatos, pelas suas propriedades anti-reabsortivas óssea, são medicamentos amplamente utilizados no tratamento de osteoporose e demais doenças ósseas crônicas, como doença de Paget ou metástases ósseas osteolíticas. Os bisfosfonatos de 3a geração, como alendronato e pamidronato, são usados de forma regular em jejum. Após a absorção intestinal, se depositam rapidamente nos ossos ou então são eliminados pela urina. A nefrotoxicidade dos bifosfonados administrados por via venosa estão relacionados respectivamente ao desenvolvimento de glomeruloesclerose focal colapsante causada pelo pamidronato e de necrose tubular aguda, pelo zolendronato. O ibrandonato parece ter efeitos nefrotóxicos menores e deve ser considerado para uso nos pacientes com disfunção renal prévia.
Antineoplásicos – A quimioterapia tem papel fundamental no tratamento de tumores neoplásicos, mas acarreta efeitos colaterais numa série de complicações sistêmicas. O comprometimento renal é uma constância para drogas quimioterápicas variadas, por diferentes mecanismos moleculares de nefrotoxicidade. Devido à sua alta eficácia tumoricida, a cisplatina é a droga mais padronizada nos esquemas antineoplásicos para tumores sólidos, como também é causa frequente de nefrotoxicidade, manifestada por uma variedade de síndromes renais. A principal consequência desta toxicidade é a insuficiência renal aguda, que decorre de uma lesão tubular direta. A cisplatina também é causa de acidose tubular renal distal, de distúrbios eletrolíticos (hipocalcemia, hipomagnesemia e hiponatremia), de microangiopatia trombótica e de lesão tubular tipo síndrome de Fanconi. Esta última manifestação também pode ser causada por outro antineoplásico, o ifosfamide, um agente alquilante isômero da ciclofosfamida. O metotrexato é um agente antifolato largamente utilizado para tratamentos oncológicos e doenças autoimunes. Quando administrado em doses elevadas por via endovenosa, o metotrexato está relacionado ao desenvolvimento de cristalização e precipitação nos túbulos renais, promovendo insuficiência renal aguda.
Imunossupressores – Os inibidores de calcineurina são as drogas mais utilizadas para imunossupressão em transplante de órgãos sólidos e nas doenças autoimunes. A ciclosporina A e o tacrolimus produzem efeito nefrotóxico dose-dependente, que pode se manifestar pela insuficiência renal aguda. O impacto do uso continuado destas drogas no rim é o desenvolvimento de fibrose interticial e insuficiência renal crônica.
Antidepressivos a base de lítio – O carbonato de lítio tem sido utilizado como base de tratamento farmacológico para o Transtorno Afetivo Bipolar, há mais de 50 anos. A estratégia terapêutica que preconiza o uso crônico da droga que pode resultar em diferentes formas de nefrotoxicidade. A dose de lítio recomendada deve ser titulada para manter nível sérico terapêutico entre 0,5 e 1,2mEq/L. A dose circulante depende da absorção intestinal e do metabolismo da droga, que estão vinculados à idade, ao peso e à presença de medicações concomitantes e das condições clínicas associadas. Sinais clínicos de intoxicação estão frequentemente relacionados a níveis séricos >1,5mEq/L e as manifestações clínicas graves, como arritmias cardíacas, estados confusionais, ataxia, convulsão, rebaixamento do nível de consciência e coma, com concentrações séricas >2,0mEq/l. O risco de intoxicação aumenta com a desidratação e o uso de medicações que alterem o nível sérico do lítio (AINHs, IEC, diuréticos tiazídicos, volproato e metildopa). A manifestação mais comum de nefrotoxicidade por lítio é o diabetes insípidus nefrogênico (DIN), que ocorre em cerca de 20% dos pacientes. No DIN, o rim não responde adequadamente ao efeito do hormônio antidiurético tendo como resultado o elevado volume urinário. Outras consequências nefrotóxicas comuns com o emprego do lítio são a insuficiência renal, a nefrite túbulo intersticial. Mais raramente pode ocorrer síndrome nefrótica e distúrbios eletrolíticos, como hipocalemia e hipercalcemia.
Inibidores da acidificação gástrica – Também chamados de inibidores da bomba de prótons (IBP), são drogas que inibem a secreção ácida na parede estomacal e por isso são amplamente utilizadas para tratar gastrites, úlceras pépticas e refluxo gastroesofágico. Os IBP empregados na prática clínica são: omeprazol, pantoprazol, lansoprazol, esomeprazol, tenatoprazol e o robeprazol. Todos têm efeito nefrotóxico e podem causar nefrite tubulo intersticial e insuficiência renal aguda. Devido ao número crescente de pacientes que utilizam os IBP as suas complicações nefrotóxicas têm se mostrado mais frequentes. Entretanto, o diagnóstico precoce destes efeitos colaterais exige experiência e suspeição clínica já que podem cursar silenciosamente, sem manifestações sistêmicas.
Estatinas – As estatinas são as drogas de escolha para o tratamento das hipercolesterolemias, tendo na miopatia o seu efeito colateral mais frequente. Estas drogas atuam inibindo a enzima que produz o colesterol no fígado. A primeira geração de estatinas (sinvastatina e pravastatina) são drogas derivadas de fungos. As estatinas utilizadas atualmente na prática clínica (fluvastatina, cerivastatina, atorvastatina e rosuvastatina) fazem parte de uma geração de drogas sintéticas. Algumas estatinas apresentam efeito específico mais seletivo, em função da sua liposolubilidade. A pravastatina e a rosuvastatina são consideradas relativamente hidrossolúveis, quando comparadas com as demais. A miopatia associada ao uso de estatinas é dose-dependente e a sua incidência aumenta em até cinco vezes quando são coadministrada com medicamentos como fibratos (especialmente gemfibrozil), varfarina, digoxina, bloqueadores de canais de cálcio, imunossupressores (ciclosporina), agentes antifúngicos (itraconazol, cetoconazol, fluconazol) e drogas antiretrovirais, como os inibidores de protease. O comprometimento muscular causa dor (miopatia) ou mais gravemente levar à ruptura de fibras musculares (rabdomiólise). Embora a nefrotoxicidade clássica das estatinas curse com insuficiência renal aguda secundária à rabdomiólise, toxicidade tubular renal também pode ocorrer independentemente de lesão muscular, por um efeito direto da droga.
Analgésico – O acetaminofen é, provavelmente, o analgésico e antipirético mais utilizado no mundo. A intoxicação aguda por acetaminofen causa falência hepática fulminante e mais raramente, insuficiência renal aguda dose-dependente. O comprometimento da função renal pode ser decorrente dos distúrbios metabólicos e hemodinâmicos resultantes da insuficiência hepática.
Agentes osmóticos, como meios de contrastes radiológicos – Diferentes compostos hiperosmolares são empregados na prática clínica, dentre eles os diuréticos, imunoglobulinas, hidroxietilamido e os meios de contraste radiológicos (MCR). Os MCR são cada vez mais empregados em procedimentos para diagnóstico e para o tratamento de diferentes condições clínicas. A nefropatia osmótica é o resultado da exposição das células tubulares renais às substâncias hiperosmolares.
De maneira geral, algumas estratégias podem ser adotadas, pelos pacientes e pelos médicos, para prevenir a nefrotoxicidade induzida por drogas.
Cabe aos pacientes:
Cabe aos médicos:
Autores:
Maurício Younes-Ibrahim – Membro Titular da Academia Nacional de Medicina
Omar da Rosa Santos – Membro Titular da Academia Nacional de Medicina