Carlos Eduardo Brandão Mello1 & João Marcello de Araujo Neto2
Introdução
Desde dezembro de 2019, um surto de infecção por um novo Coronavírus (SARS-CoV-2), iniciado em Wuhan (China), se tornou uma pandemia, promovendo séria ameaça à saúde publica em todo o mundo. O número crescente de casos (mais de 1 milhão até 05 de abril de 2020) atingiu proporções alarmantes na China, na Europa e nos EUA, e chegou ao Brasil em 26 de fevereiro de 2020.
A maioria dos casos de infecção pelo COVID-19 (> 80%) são assintomáticos ou com sintomas leves que se resolvem sem necessidade de tratamento específico. Entretanto, cerca de 15% podem evoluir com pneumonia intersticial grave e ter taxas de mortalidade de até 5%. Em geral, as formas graves decorrem de dano alveolar pulmonar e insuficiência respiratória grave (SARS).
Até o momento, o envolvimento hepático na infecção pelo COVID-19 foi objeto de estudo em, pelo menos, 7 séries de casos que analisaram os aspectos clínicos e serão resumidos a seguir em 5 tópicos distintos:
A) Manifestações hepáticas em pacientes sem hepatopatias prévias:
As manifestações clínicas da infecção pelo SARS-CoV-2 são predominantemente de febre (98%), fadiga (69%), tosse seca (59%), anorexia (39%), mialgia (34%), dispneia (31%), diarreia e náuseas (10%), segundo um estudo chinês que analisou mais de 1.099 pacientes. Nesta coorte, 81% dos casos tiveram apresentações clínicas leves, 13.8% foram casos graves (FR > 30 irpm, saturação de O2 < 93% e infiltrado pulmonar >50%) e, 4.7% eram pacientes críticos necessitando de ventilação mecânica e complicados por insuficiência renal, choque ou falência de múltiplos órgãos.
Cerca de 2% a 11% dos casos de infecção pelo COVID 19 apresentavam anormalidades laboratoriais hepáticas. A frequência de elevação das aminotransferases variou de 20% a 53%, sendo esta ocorrência maior nos pacientes com manifestações clínicas mais graves (ALT, AST > 2 x limite superior da normalidade (LSN). Nos casos leves, o aumento das enzimas hepáticas parece ser transitório e sem repercussões clínicas, não sendo necessário nenhum tratamento específico.
Na análise preliminar de 1076 pacientes chineses infectados pela COVID-19 vistos no CUIMC, a frequência de elevações de AST/ALT > LSN foi de 33%; maior de 2 x o LSN de 10% e > 5 x o LSN de 2.4%. A elevação de AST maior do que a ALT pode sugerir, também, a possivel contribuição da AST oriunda de outros sítios fora do fígado, principalmente músculos.
Em uma série de casos foi relatado aumento isolado de gamaglutamiltranspeptidase (GGT) em até 54% dos pacientes, sendo, na grande maioria dos casos associado a fosfatase alcalina normal. Sabe-se que as células dos ductos biliares (colangiócitos) tem grande expressão de enzima conversora de angiotensina 2 que funciona como receptor viral. Embora o aumento de GGT já tenha sido evidenciado nesta pandemia, ainda não se sabe se doenças colestáticas podem ser exacerbadas pelo SARS-CoV-2.
Aumento das bilirrubinas e redução das concentrações de albumina são pouco frequentes, mas podem ocorrer, principalmente, nos casos de evolução mais grave. Nestes, observou-se também alterações da coagulação, como prolongamento do tempo de protrombina, plaquetopenia, fibrinólise, coagulação intravascular disseminada (CIVD) e episódios de tromboembolia pulmonar.
Outras causas aventadas para as elevações de aminotransferases dizem respeito aos mecanismos de hipóxia, isquemia, miosites, hepatoxicidade por drogas e a síndrome de resposta inflamatória com a liberação de citocinas.
B) Manifestações hepáticas em pacientes com hepatopatias prévias:
Na China, cerca de 300 milhões de indivíduos são portadores de infecção pelos vírus das hepatites B (HBV) e C (HCV) ou apresentam doença hepática crônica de etiologia metabólica. Desta forma, não seria incomum a ocorrência de infecção pelo novo coronavírus em pacientes com doenças hepáticas prévias. Admite-se que 2% a 11% dos pacientes com COVID-19 na China apresentavam doenças hepáticas crônicas pré-existentes. Nos pacientes com hepatite crônica viral B ou C o tratamento antiviral deve ser mantido e deve se avaliar o melhor momento para o inicio da terapia naqueles à espera dos medicamentos.
É plausível que pacientes com doença hepática crônica e cirrose hepática, à semelhança dos diabéticos, hipertensos, cardiopatas, portadores de DPOC e insuficiência renal crônica, possam apresentar maior susceptibilidade a infecções graves pelo SARS-CoV-2, porém este fato precisa ser avaliado por estudos clínicos. Atenção especial deve ser dispensada aos pacientes com cirrose descompensada Child B ou C e aqueles com hepatopatias crônicas em idade avançada.
Sinais de descompensação da cirrose como encefalopatia hepática, icterícia, ascite ou sangramento digestivo devem ser avaliados para a possibilidade de se relacionarem com o COVID-19.
No contexto do COVID-19, o uso de sistemas de diálise hepática em pacientes com sinais de insuficiência hepática pode ser considerado, mas necessita de mais estudos.
C) Potenciais mecanismos de lesão hepática
Estudos de biologia molecular por técnicas de RT-PCR revelaram a presença do genoma viral no tecido hepático e nas células de revestimento do epitélio biliar. O dano hepático na infecção pelo COVID 19 parece ocorrer por efeito citotóxico viral direto, mas também é possível ocorrer dano secundário imunomediado ou desencadeado pela tempestade inflamatória (bystander hepatitis), com a produção e liberação de citocinas pró-inflamatórias, como IL-1 e IL-6.
Estudos anatomopatológicos de fragmentos hepáticos revelaram a presença de esteatose microvesicular associada de processo inflamatório portal e lobular, além de necrose hepática focal e centrolobular. São aspectos morfológicos muito semelhantes aos descritos na sepse e doença gordurosa não alcóolica do fígado.
É importante citar que no contexto de infecções graves, em caso de dano hepático, deve-se considerar no diagnóstico diferencial hepatite isquêmica, sepse ou congestão venosa do fígado pela sobrecarga cardíaca direita nos pacientes com pneumonia intersticial e fibrose pulmonar.
Os medicamentos utilizados no manejo dos pacientes com COVID-19 grave podem causar lesão hepática, a destacar antibióticos macrolídeos como a azitromicina, quinolonas, clavulanato, antivirais como Lopinavir/Ritonavir, Favipiravir, Atazanavir, Remdesivir, Cloroquina e Hidroxicloroquina e inibidores da IL-6 e imunomoduladores, como Tocilizumab, Siltuximab e Sarilumab. A possibilidade de interação medicamentosa deve ser lembrada com o uso de antivirais como o Ritonavir e de alteração do intervalo QT com o emprego da cloroquina/hidroxicloroquina.
D) Manifestações hepatobiliares e gastrointestinais
Em cerca de 2% a 10% dos casos, as manifestações inaugurais do COVID-19 são gastrointestinais ou hepatobiliares. Os principais sintomas digestivos descritos são náuseas, vômitos, diarreia e dor abdominal, mesmo na ausência de sintomas respiratórios. É possível que pacientes com este perfil possam apresentar pior evolução.
Outras formas de apresentação já foram descritas como a dor abdominal em quadrante superior direito, simulando quadros de colecistite alitiásica e dor abdominal em barra, sugerindo pancreatite aguda viral. Há relatos de apendicite aguda, adenites mesentéricas e de falsos quadros de abdômen agudo em pacientes com COVID-19.
Desse modo, deve-se aumentar o índice de suspeição para os sintomas inespecíficos fora do sistema respiratório que pode ser útil para as medidas de isolamento precoce dos pacientes.
O RNA viral do SARS-COV2 pode ser detectado nas células intestinais e nas fezes, sugerindo a possibilidade de transmissão oro-fecal.
E) Manifestações hepáticas em pacientes com doenças autoimunes, colestáticas, CHC e transplante hepático.
Ainda não se sabe se pacientes com doenças autoimunes em tratamento ou após o transplante hepático têm maior risco nas infecções pelo COVID-19. Estudos com pacientes imunossuprimidos na Itália por outras doenças não evidenciaram maior risco desta população.
As orientações de guidelines internacionais sugerem que os pacientes em imunossupressão e não infectados pelo COVID 19 devem continuar utilizando as medicações nas doses habituais durante a pandemia, evitando-se assim exacerbações (flare) da doença hepática. Nos pacientes com COVID 19, pode-se reduzir a dose da prednisona para 10mg/dia e reduzir azatioprina, micofenolato e inibidores de calcineurina, principalmente no contexto de linfopenia, febre ou piora pulmonar.
Recentemente, D’Antiga et al. (2020) em Bergamo, demonstrou que entre 200 transplantados de fígado, incluindo 10 pacientes hospitalizados, 100 com hepatite autoimune e 3 em quimioterapia para hepatoblatoma, nenhum desenvolveu doença pulmonar clinicamente significativa, embora 3 testassem positivo para o COVID 19. Esses dados sugerem que pacientes imunossuprimidos não sejam considerados de risco mais elevado de doença pulmonar grave, quando comparados com a população geral.
É de fundamental importância que esta população permaneça regularmente monitorada pelas equipes médicas, mantendo as recomendações de isolamento domiciliar e rotinas de higiene similares à população geral.
Desconhece-se até o presente momento como é o comportamento da infecção pelo COVID-19 em pacientes com neoplasias primárias do fígado e naqueles com hepatites virais crônicas.
Pacientes com cirrose, hepatite autoimune em uso de imunossupressão e após transplante hepático devem ser orientados a entrar em contato com a equipe médica se apresentarem febre e/ou sintomas respiratórios. A estratificação de risco e orientação sobre necessidade de procurar serviço de urgências médicas deve ser feita conforme a gravidade dos sintomas.
Recomendações práticas da Sociedade Brasileira de Hepatologia para centros especializados de atendimento em Doenças do Fígado durante a pandemia:
Referências bibliográficas:
2 Professor Titular do Departamento de Clinica Médica da Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Professor Adjunto do Departamento de Clinica Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ.
Presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia.
Membro Titular da Academia Nacional de Medicina
1 Professor Assistente do Departamento de Clinica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Médico do Instituto Nacional do Cancer (INCa).