Em mais um Simpósio organizado pela Academia Nacional de Medicina, Acadêmicos, estudantes, representantes das forças policiais e juristas se reuniram no Anfiteatro Miguel Couto para discutir Drogas, Saúde e Direito. Organizado pelos Acadêmicos Francisco Sampaio e Antonio Nardi, juntamente com o Desembargador Siro Darlan e a Juíza Maria Lúcia Karam, o Simpósio preencheu o anfiteatro, que recebeu importante debate.
Após a abertura feita pelo Presidente Francisco Sampaio, o Desembargador Siro Darlan proferiu algumas palavras sobre a importância do Simpósio, destacando que este pode ser um marco para o debate, garantindo sua continuidade em outras instâncias. Para o Desembargador, reunir os principais nomes da Medicina brasileira para discutir um tema de tamanha importância remete aos feitos da Dra. Nise da Silveira que, em seu olhar humanitário, revolucionou a psiquiatria brasileira. Em sua fala, ressaltou que é preciso entrar neste debate “desarmado” de preconceitos, uma vez que discutir o tema Drogas implica em discutir aspectos essenciais da vida das pessoas. Por fim, fez uma importante ligação do Simpósio com o momento político pelo qual o país está passando, afirmando que a Guerra às Drogas possui um forte componente associado à corrupção que não pode ser ignorado.
Em seguida, a Juíza Maria Lúcia Karam fez suas considerações iniciais, abordando o trabalho da Associação dos Agentes da Leia contra a Proibição (LEAP, na sigla em inglês). Criada em 2002 por quatro policiais estadunidenses e um policial canadense, a LEAP possui hoje milhares de membros diretamente ligados ao sistema penal e apoiadores ao redor do mundo, se fazendo presente no Brasil desde 2010. Um dos objetivos da organização é informar sobre a falência e os danos causados pela atual política de drogas, além de restaurar o respeito público aos integrantes das forças policiais, afetado negativamente por seu envolvimento na Guerra às Drogas. Segundo a Juíza, a LEAP não incentiva o uso de drogas, mas se preocupa com o impacto da atual política mundial de proibição às selecionadas drogas tornadas ilícitas – proibição esta que não resolve os problemas relacionados ao abuso de drogas, nem impede sua proliferação. Ressaltou que legalizar não significa permissividade ou liberação, mas sim regular e controlar este mercado.
O Dr. Técio Lins e Silva, Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, fez discurso destacando o valor simbólico do evento, que reuniu as duas mais antigas instituições científico-culturais do Brasil ainda em funcionamento, a Academia Nacional de Medicina, fundada em 1829, e o Instituto dos Advogados do Brasil, fundado em 1843. Afirmou que discorrer sobre este assunto é fazer um esforço em benefício da cidadania, ressaltando que a proibição criou um novo “nicho” de violência, antes inexistente. Destacou o esforço no esclarecimento dos efeitos deletérios da política proibicionista efetuado por autores como Salo de Carvalho, Maria Lúcia Karam, Nilo Batista, e muitos pioneiros, como Alberto Zacharias Toron e Álvaro Mayrink da Costa, que assumiram posição já na década de 1980, quando o assunto era tabu.
Dando início às palestras do dia, o Coronel Jorge da Silva (PMERJ), a Dra. Sandra Ornellas (Polícia Civil), o Tenente Anderson Duarte (PMCE) e o Dr. Bruno Vieira de Freitas (Inspetor de Polícia Civil) fizeram rodada de apresentações sobre A Experiência da “Guerra às Drogas”.
O Coronel Jorge da Silva (PMERJ), iniciou sua conferência afirmando que é preciso entender que não se trata de um “problema das drogas”, mas sim de uma questão social complexa, envolvendo diversos setores da sociedade. Apontou que é preciso avançar do modelo proibicionista para um modelo prevencionista, de forte viés educacional-terapêutico, cujo foco seria afastar os jovens das drogas, revelando uma preocupação social. Em seguida, apresentou dados referentes aos resultados da nova Lei Antidrogas, de 2006, que revelaram que entre 2007 e 2010, o número de presidiários por delitos relacionados às drogas aumentou em 62,5%.
Na conclusão de sua conferência, Jorge da Silva afirmou que é preciso regulamentar a produção, a distribuição, a venda e o consumo de todas as drogas, sob controle do Estado. Ao longo do processo de implementação deste modelo, ressaltou que é preciso investir na combinação de educação, prevenção e tratamento para aqueles que necessitam.
Na sequência, a Dra. Sandra Ornellas apresentou relato sobre sua experiência como Delegada da Polícia Civil, chamando atenção para o fato de que, após a aprovação da Nova Lei Antidrogas, houve um aumento contundente no número de prisões relacionadas às drogas, principalmente na Zona Oeste do Rio e na Baixada Fluminense. Chamou atenção para o aumento da população carcerária feminina – cujo aumento registrado ultrapassa os 200%, e para as consequências sociais advindas deste fato, uma vez que, diferente da população carcerária masculina, que muitas vezes recebe uma rede de suporte familiar, o que se registra nas prisões femininas é, na maioria dos casos, o abandono e a desintegração familiar.
Em conclusão, a Dra. Sandra Ornellas ressaltou que a construção de um “inimigo” (neste caso, a figura do traficante, fortemente vinculada a aspectos econômicos, sociais e raciais) gera prejuízos para toda a sociedade e, além disso, a securitização da questão das drogas acaba por eclipsar importantes ferramentas de combate, como a prevenção e a educação. Por fim, questionou quais são os reais interesses envolvidos na validação do discurso proibicionista e militarizado de combate às drogas.
O Tenente Anderson Duarte (PMCE) destacou que entre 1992 e 2012, a população carcerária brasileira saltou de 114 mil para aproximadamente 550 mil pessoas presas: um crescimento de 380% (INFOPEN), enquanto a população brasileira cresceu apenas 30% no mesmo período, segundo o IBGE. Chamou atenção para o fato de que a Polícia brasileira é “a que mais mata e a que mais morre em todo o mundo”, apresentando os principais efeitos da adoção de uma política proibitiva, como o desvio das funções policiais e a militarização de suas ações; o desrespeito a direitos, garantias e liberdades para a manutenção da Guerra às Drogas, considerada uma “questão de segurança”; e a “criminalização da pobreza”, como descrita pelo sociólogo francês Loïc Wacquant.
Finalmente, o Tenente Anderson Duarte argumentou que somente a legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas permitirá a regulação e o controle do mercado das drogas. Segundo ele, a proibição “entrega” o mercado de drogas a agentes que não estão submetidos a qualquer controle ou regulamentação de suas atividades econômicas.
O Dr. Bruno Vieira de Freitas, Inspetor de Polícia Civil, afirmou que, para entender o quadro atual relacionado à Guerra às Drogas, é preciso entender o funcionamento dos órgãos de força policial e seus gestores. Uma das principais fragilidades de nosso sistema deve-se ao fato de que a Segurança Pública como é pensada no Brasil, caracteriza-se por uma política de “ocasião”, que cobra respostas imediatas dos gestores, sem dar, entretanto, chance para estudos mais específicos e o desenvolvimento de uma política uniforme e embasada. Dessa forma, o “bom policial” é aquele que oferece as “respostas certas” às demandas ocasionais, o que acaba por se traduzir em números de prisões e operações espetaculosas, sem resultar na resolução da problemática das drogas.
Para o Inspetor, é necessário entender que se trata de um problema de Saúde Pública, ressaltando o papel do Ministério da Saúde como órgão regulador. Por fim, afirmou que essa mudança de paradigma é necessária para evitar que ainda mais jovens se associem às redes do tráfico, mantendo a situação de extrema vulnerabilidade a qual o jovem brasileiro está exposto atualmente, principalmente nas populações mais carentes.
Discorrendo sobre “Transtornos Mentais Associados às Drogas”, o Acadêmico Antonio Egídio Nardi chamou atenção para o fato de que o conceito de drogas não se limita apenas às drogas ilícitas, e que existem diversos tipos de drogas cujo consumo considerado “banal”, dificulta identificar comportamentos de consumo abusivo e de dependência, além de serem menos discutidos. Como exemplo de drogas lícitas que possuem alto risco de dependência, é possível destacar a cafeína, com efeitos agudos como agitação, irritabilidade, insônia, alteração digestiva, náusea, cefaleia, diurese e taquicardia, e quadros crônicos de hipersônia e cefaleia (dor de cabeça); e o álcool, cujos efeitos agudos incluem quebra das inibições, euforia, depressão, diminuição da consciência e estupor, podendo desencadear efeitos crônicos como obesidade, impotência, psicose, úlceras, subnutrição, danos cerebrais e hepáticos.
O psiquiatra apresentou aqueles que acredita serem os principais motivos que levam as pessoas ao consumo de drogas, destacando o desejo de experimentar o novo, fuga de sofrimento ou rotina, a sensação de prazer em comportamento arriscado, a “romantização” do uso de drogas pela mídia e o desejo de socialização, destacando neste último caso a vulnerabilidade da população jovem.
Em seguida, apresentou estudo sobre o uso do cannabidiol (princípio ativo encontrado na maconha) como um ansiolítico, destacando que esta é a droga mais utilizada em todo mundo – cerca de 20% da população mundial de jovens utilizam de forma abusiva e regular. Os resultados encontrados sustentam a possibilidade do uso do cannabidiol como uma nova droga com propriedades ansiolíticas, uma vez que não possui efeitos psicoativos e não afeta a cognição, configurando um perfil de segurança adequado. Apesar de haver a necessidade de estudos complementares devido à variedade de efeitos no sistema nervoso, estudos dessa natureza representam um grande avanço na utilização de drogas para fins terapêuticos, como feito outras vezes no passado.
Na conclusão de sua conferência, o Acadêmico Nardi destacou as principais razões pelas quais é necessário cautela e parcimônia ao se discutir um tema tão complexo quanto drogas, uma vez que seu uso envolve múltiplos riscos à saúde, como lesões permanentes no cérebro (e outros órgãos), o desenvolvimento de dependência, risco de intoxicação, alterações no comportamento, dentre outros. Além deste fato, o consumo de drogas pode configurar uma “porta de entrada” para doenças mentais em pacientes com predisposição.
O Professor Dartiu Xavier da Silveira Filho (UNIFESP) apresentou conferência sobre “A Redução dos Riscos e Danos Associados às Drogas”, onde apresentou um histórico da relação do homem com as drogas, afirmando que o consumo de plantas psicoativas remete aos ancestrais do homem. Sobre as políticas de intolerância adotadas com relação às drogas, deu especial destaque à Lei Seca americana, focada na proibição do consumo de álcool, que durou de 1919 a 1933. Segundo os dados apresentados pelo Prof. Dartiu, alguns dos desdobramentos mais relevantes da Lei incluem o surgimento de 500.000 novos delinquentes, o registro de 34% dos agentes do governo suspeitos de corrupção, além de 30.000 mortes por ingestão de álcool metílico e o registro de casos de uso de álcool injetável.
Chamou atenção para o fato de que a proposta de legalização tem por principal fundamento a regulação por parte do Estado, de forma a normatizar a produção, distribuição e o consumo, tal como ocorre com outras drogas como o álcool. Não se trata, portanto, de banalizar, incentivar ou fomentar o consumo, mas sim de retirar o controle das mãos dos traficantes, proporcionando maior segurança para os usuários, uma vez que, reguladas pelo Estado, a produção e a distribuição estariam submetidas a mecanismos de segurança e controle de qualidade.
Discorreu sobre os trabalhos desenvolvidos no PROAD (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes), serviço ligado ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) destinado a dependentes de substâncias ilícitas e lícitas, além de atuar na área de dependências comportamentais. Um dos estudos dá conta do uso terapêutico da cannabis em viciados em crack, conduzido pelo Prof. Dartiu Xavier juntamente com os Profs. Eliseu Labiagalini e Lucio Ribeiro Rodrigues. O estudo observou os resultados da utilização de cigarros de maconha para diminuir sintomas de abstinência do crack, onde os resultados mostraram que 68% dos pacientes interromperam o uso de crack, referindo que a cannabis diminuiu a fissura, ajudando-os a manter o estado de abstenção da droga.
Na conclusão de sua palestra, o Prof. Dartiu Xavier ressaltou que o controle do uso de substâncias psicoativas é complexo e merece ser discutido amplamente pela sociedade em todas as suas instâncias, citando exemplo de regulação do tabaco no Brasil, onde não foi necessário impor ao usuário medidas de natureza penal para gerar resultados exemplares na redução do consumo, salientando que o Brasil possui hoje a maior taxa de cessação do uso de cigarros no mundo. Afirmou ainda que o endurecimento das leis de drogas em sua instância mais vulnerável, o usuário, pode implicar em danos à saúde pública, uma vez que distancia as pessoas que usam drogas dos sistemas de saúde e de assistência social.
Ao final das apresentações, foi iniciado importante debate conduzido pelo Presidente Francisco Sampaio, o Benemérito Pedro Grossi Jr. e o Desembargador Siro Darlan que, após fazerem suas considerações finais, foram acompanhados pelos demais Acadêmicos em discussão de alto nível intelectual, pontuando a necessidade de formulação de ações concretas de combate à atual situação associada às drogas.